Um obituário (entre tantos)

Nas bandas em que escreveu boa parte da história do rock’n’roll, aquela que ainda hoje insistimos em ouvir e em tentar reproduzir, nunca foi principal vocalista, “o cantor”, nunca foi o “frontman” nem o guitarrista virtuoso. Paradoxo absoluto: sem ele, não saberíamos da mesma maneira quanto vale uma harmonia no verso certo, um delírio antes do refrão, não teríamos a mesma consciência da preciosidade que representam três minutos e meio numa vida. David Crosby, o homem que viveu para a canção seguinte, com tudo o que de maravilhos e de terrível que tal tarefa pode representar, morreu esta quinta-feira, 19 de janeiro, aos 81 anos.

David Crosby, founding member of The Byrds and Crosby, Stills & Nash was arrested by Dallas police in April 1982 and charged with drug and gun possession. (Photo courtesy Bureau of Prisons/Getty Images)

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Roland Barthes, narrativas e coronavírus

As narrativas, segundo sua análise, se sustentam menos em uma verdade do que em uma plausibilidade.

A noção de plausibilidade é de Roland Barthes, que a usou para falar de narrativas em um sentido mais filosófico-literário nos anos 1970. O filósofo Paul Ricoeur e outros também desenvolveram toda uma teoria da narrativa. É o meu tema nas relações internacionais, e o utilizo no contexto político. Os teóricos da narrativa disseram que cada indivíduo é confrontado a um conjunto de acontecimentos e dados, e tenta dar um sentido geral a tudo. E a isso se acrescentam as crenças de suas sociedades. Hoje, estamos em uma zona vaga de incertezas, a começar pelos epidemiologistas. E não se faz política com incertezas. A política tem horror deste vazio e desta zona vaga, não sobrevive neste terreno. Então é preciso dar um sentido. Quando se deve administrar um espaço nacional – e também internacional -, se é obrigado a habitar esta zona, preenchê-la. É a própria natureza da política que leva a isso. Qual a verdade do grande debate atual saúde x economia? É preciso organizar uma narrativa que vá produzir algo plausível, que tenha um sentido, seja coerente. Há várias dimensões nesta crise.

Boa entrevista. Aqui.

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Dez direitos do leitor

1. O direito de não ler.

2. O direito de pular páginas.

3. O direito de não terminar um livro.

4. O direito de reler.

5. O direito de ler qualquer coisa.

6. O direito ao bovarismo.

7. O direito de ler em qualquer lugar.

8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali.

9. O direito de ler em voz alta.

10. O direito de se calar

COMO UM ROMANCE – Daniel Pennac

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momentos antecedentes

 
1. Um estudo nunca lido: uma análise cuidadosa do aumento do tempo passado pelas pessoas em filas, com informações selecionadas que atestam ou não que o tempo de permanência das pessoas em filas têm subido ou caído conforme o avanço das décadas, a profissionalização do atendimento. E se descobrir que nos anos 80, mais de trinta anos atrás, as filas eram maiores?
 
2. Havia um cachorro de que eu gostava. Ele entrava no elevador para passear no térreo e imediatamente começava a esfregar a pata na porta, exigindo que abrisse. Imagino que para ele o elevador é uma cabine mágica onde um cão entra e sai em outro lugar, que para ele é o mesmo. Mas para ele isso tinha que ser rápido. Hoje, de brincadeira, se vejo que a espera está demorando, começo a arranhar a mesa sem chamar atenção.
 
3 – Uma espera agradável: antes dos jogos de futebol. Uma média: os momentos antes dos shows. Uma espera ruim, a de cirurgias. Uma vez, muitos anos atrás, um dia acordei e notei uns nódulos no braço. Depois de um exame, fui encaminhado ao cirurgião plástico, que marcou a cirurgia para dali a quinze dias. Na tarde combinada, depois de esperar numa fila e preencher papéis, fui levado a uma sala, onde era a única pessoa. Tinha a companhia da TV ligada em uma cirurgia. Barney, um homem enorme, havia sido baleado, mas se recuperava bem. Porém houve algumas complicações e agora ele lutava pela vida. Meu nome foi chamado e saí da sala. Olhei antes para a TV: Barney parecia que ia escapar dessa. Depois disso, achei que era mesmo a minha vez, porém o chamado era para descer até o térreo e assinar mais um documento isentando o hospital caso algo desse errado.
 
4. Eu tinha um emprego em Niteróí e por isso toda manhã atravessava a Baía de barca. O negócio de viajar nas barcas era saber se posicionar. A cantareira levava cinco minutos ou mais para manobrar, nesse ponto, você tinha que se escolher um lugar de onde, assim que o barco estacionasse, podia subir correndo e disputar no salão um lugar sentado. A barca se aproximava, todos em posição, como os corredores antes de uma prova. Assim que os funcionários amarravam as cordas no atracadouro, abria o portão na estação. O salto para a proa exigia certa perícia, pois o mar continuava embaixo de nós, tentando nos desequilibrar. Mas em geral e fazia isso para pegar um bom lugar na parte de cima. Eu gostava de ir em pé, recebendo o vento no rosto. A Baía de Guanabara tinha cheiro de lodo e maresia. Nos dias bonitos e nos feios, era o cheiro que me acompanhava.
 
5. Em Istambul, coisa parecida aconteceu no ferry boat que cruza o Bósforo. Aberto um portão, as pessoas correram para pegar lugar. O que me incomoda nessas horas é a expressão de alegria pelo lugar obtido. Por anos, tive a mesma impressão, no metrô do Rio. Na estação Praça XI, os trens encostavam vazios, os bancos todos à espera de que alguém os ocupasse. A estação estava sempre lotada, de modo que um lugar perto da porta era quase garantia no canto de um banco, antes que um cara.O serviço de barcas submete você ao desconforto de brigar por um lugar e como pessoas adultas reagem? Como se estivessem no jogo das cadeiras, aos sete anos.
 
6. Uma cidade devia ser organizada conforme o número de filas que pode pode produzir.
 
7. As leis obrigaram os bancos a tentar resolver a espera com cadeiras. Melhorou um pouco, o que é curioso. Frequentando os mesmos bancos, quando a espera podia ser grande, com um monte de caixas abertos e as pessoas em pé na fila, a espera média de um Itaú era de uma hora e meia. Eu trabalhava no Rio e era cliente do Bradesco. Minha mãe foi cliente do Bradesco por muito tempo e vivia indo ao banco, me levando junto. Tenho certeza de que tudo começou aí.
 
8; Uma coisa que detesto em São Paulo: as filas. Para poder escrever, eu acordava às cinco e meia da manhã. Pelas 6 e 15, ia até o supermercado, o que me esperava? Uma fila de umas doze pessoas no caixa. Às seis e quinze da manhã.
 
9. Mas a pior de todas as esperas paulistas é na esteira rolante que liga as estações Paulista e Consolação. Sinto-me transformado em gado ali, esperando com paciência o final. A rampa se move com uma lentidão desesperadora, todos os rostos, tenho a impressão, se tornam pacíficos. Um grande buraco com uma trituradora de gente e carne no final não mudaria o comportamento de ninguém.
 
10. Existe a última espera, a simbólica. Um homem um dia chegou a uma estação de trem na Euopa e o relógio marcava duas e cinco. O trem partia às três e meia. Ele foi até o bar, pediu duas cervejas e às 3 e 25, vem satisfeito, estava sentado em sua poltrona. O que não tem nenhum significado, pois não sou o Paulo Coelho.
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Doria, a comida sintética e uma distopia

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Do filme À beira do fim:

Em 2022, na cidade de Nova York, vivem 40 milhões de habitantes e não há mais comida. Para alimentar os pessoas pobres e desempregados, existem apenas tabletes verdes chamados de soylent green, produzidos inicialmente através da industrialização de algas. Somente os ricos têm acesso a comidas raras, como carnes, frutas e legumes.

Na história original, Make room, Make room, de Harry Harrison, no qual o filme se baseia, a comida se chama soylent steaks (lascas de soja ou de lentilha) e se parece com a farinata, comida sintética que a prefeitura de São Paulo vai distribuir.

A solução do filme – canibalismo involuntário para as massas – para a falta de comida não aparece no livro, lançado em 1966 e que tem capas absolutamente maravilhosas. A história em Make Room, Make Room  é focada na vida, inclusive amorosa, caótica de um policial em meio à escassez de comida.

Já o longa de Richard Fleischer, de 1973, é um trailerzão de ficção científica dos melhores da época, inclusive com Charlon Heston berrando no final.

A razão em ambas as obras para a existência do alimento sintético é a mesma: a superpopulação no mundo, com 7 bilhões de pessoas, e uma agricultura incapaz de sustentá-las.   Algo que talvez seja possível nas próximas décadas com a ameaça das mudanças climáticas, mas que por enquanto não é realidade – graças à tecnologia, a agricultura, na verdade, cada vez produz mais usando menos espaço.

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cartaz do filme

Um salto para Doria e a prefeitura. Há um ponto em comum entre a realidade e as duas distopias: a  visão precária dos direitos dos mais pobres. Mas no caso de São Paulo não é o pior.

Na cabeça de um escritor dos anos 60, só uma catástrofe ambiental monumental, combinada com a lei de Malthus, para justificar a decisão de servir comida sintética aos mais pobres.

Em São Paulo, sem tragédia ambiental alguma,  sem todas as informações e sob críticas de pessoas que lutam contra a desnutrição, está sendo feito sob a justificativa de combater a fome e evitar desperdício.

Ambas as iniciativas são válidas, mas também revelam um método. Primeiro, se levantaram especialistas a dizer: comida de verdade é o mais indicado para uma boa alimentação.

Segundo, é onde essa discussão  acontece. São Paulo não passa por uma crise de alimentos e nem de pobreza, é a cidade mais rica de um país onde o agronegócio é fortíssimo.  Este tipo de alimento não é contingência, é escolha.

Nem comida de verdade resta aos mais pobres em um dos maiores produtores de alimentos do mundo?

Harrison não conhecia o Brasil de 2017.

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Quatro palavras sobre um romance de Pynchon

O Arco-Íris da Gravidade compartilhou em 1974 o prêmio National Book com Uma Coroa de Penas e Outras Histórias, de Isaac Bashevis Singer. Naquele mesmo ano, o Pulitzer unanimemente recomendou O Arco-ìris da Gravidade para o prêmio, mas o Conselho vetou a recomendação, descrevendo o romance como “Ilegível”, “túrgido (inchado)”, “sobrescrito” e em partes “obsceno”. (Nenhum Prêmio Pulitzer para a Ficção foi condedido e nem os finalistas foram anunciados antes de 1980.

Do perfil do autor na Wikipedia.

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A pontuação segundo Cormac McCarthy

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Cormac McCarthy recusa aparições a ponto de uma ex-mulher narrar que o casal, sem dinheiro, passava fome nos anos 70 enquanto ele rejeitava os convites para eventos literários.  Em 2008, contudo, o autor de “Meridiano de Sangue”, “A Estrada”, “Onde os velhos não têm vez” e outros ótimos romances rompeu a reclusão para uma entrevista à apresentadora Oprah Winfrey. Continua como único registro  da confissão de suas duas grandes influências na maneira de usar a pontuação: William Faulkner e MacKinlay Kantor, autor hoje esquecido, mas que foi o ganhador do Pulitzer em sua época.

Não li MacKinlay, mas Faulkner, assim como McCarthy, gostava das frases curtas. Há outras características:  os pronomes que surgem quase do nada, o vocabulário obscuro, cheio de palavras inventadas e uma prosa densa, repleta de figuras de linguagem elaboradas. McCarthy, como Faulkner,  é ambíguo e gosta de reter  informações,  que não fornece ao leitor. Muitas vezes tempo e espaço ficam indefinidos e ambos os escritores são usuários recorrentes de flashbacks.

Quando à pontução, ele destacou três (desculpe) pontos:

1. Aspas. 

Não usa. Os diálogos são diretos, sem marcações. Por mais que isso possa incomodar a leitura e contrariar aquilo que se ensina nas oficinas de escrita,  é claro que com ele funciona. Escrever o diálogo desse jeito, McCarthy salienta, exige o compromisso de ser claro para não deixar o leitor perdido: “Você realmente tem que estar ciente de que não há aspas e escrever de forma a orientar as pessoas quanto a quem está falando”. Se fracassar nisso, o leitor se perde e a confusão começa a competir com a narrativa.

Um exemplo disso logo no comecinho de “Meridiano de Sangue”.

Amigos, disse o reverendo, ele não conseguia ficar de fora desses antros do inferno, antros do inferno bem aqui em Nacogdoches. Eu disse a ele, disse: Vai levar o filho de Deus ali dentro com você? E ele disse: Oh, não. Não, não vou. E eu disse: Não sabe que ele disse eu vou seguir você por todo o sempre até o fim da jornada?
Bem, ele disse, não pedi a ninguém pra ir aonde quer que seja. E eu disse: Amigo, não precisa pedir. Ele vai acompanhar você em cada passo do caminho, querendo ou não. Eu disse: Amigo, não pode se livrar dele. Ora. Vai arrastá-lo a ele, a ele, àquele antro do inferno ali?
Já viu um lugar onde chove desse jeito?
O kid observava o reverendo. Virou para o homem que falava. Usava longos bigodes à moda dos tropeiros e portava um chapéu de abas largas com uma copa baixa e redonda. Era levemente estrábico e observava o kid gravemente, como que ansioso por saber sua opinião sobre a chuva.
Acabei de chegar, disse o kid.
Bom, nunca vi nada igual.

2. Dois pontos e ponto e vírgula:

“Você pode usar dois pontos se está se preparando para dar uma lista de algo que se segue ao que acabou de dizer”. Usar dois pontos exige uma situação muito específica:  enumerar algo, fazer uma lista, etc. McCarthy considera desnecessários os outros usos.

No entanto, não é bem assim. Não há, por exemplo, nenhuma lista em “Meridiano de Sangue” e em “A Estrada”, os dois pontos, mais do que produzir listas, têm um único uso frequente: introduzir falas dos personagens.

Reza mais alto, gritaram alguns, e prostrando-se de joelhos ele gritou em meio aos trovões e à ventania: Senhor estamos secos como charque por aqui. Só umas gotas para os rapazes aqui na pradaria e tão longe de casa.

(Meridiano de Sangue)

Eles se foram e eu fiquei, eles levaram consigo o mundo. Pergunta: Como faz aquilo que nunca será para ser diferente daquilo que nunca foi?

(…)

O menino não respondeu. Em seguida ele disse: O lugar de dar corda não estava funcionando.

(A Estrada)

Quanto ao ponto e vírgula? “Zero ponto e vírgula”.

3. Simplicidade. 

“Eu acredito em pontos, em dois pontos, na vírgula ocasional e é isso”. Na faculdade, ele se exercitava simplificando ensaios do século XVIII, retirando pontos e vírgulas. Gostava do estilo dos autores, mas achava-os, como muitos do começo do inglês moderno, travados demais pelo excesso de ponturação. Estimulado por um professor, seguiu fazendo aquilo nas traduções e mais tarde na própria escrita ” para tornar mais fácil, para não tornar mais difícil”.

De fato, eis trechos tipicamente mccarthianos:

A cachoeira caía no poço quase no centro. Um coágulo cinzento a circundava. Ficaram lado a lado chamando um ao outro sobre o ruído.

(…)

Ele abriu o zíper da parca, deixou-a cair sobre o cascalho e o menino se pôs de pé e eles se despiram e caminharam até a água. De uma palidez fantasmagórica e tremendo. O menino tão magro que ele sentiu um aperto no coração. Mergulhou de cabeça e reapareceu arquejando e se virou e ficou parado, batendo os braços.

(A Estrada)

Curto, duro e seco, o que não impede cada passagem de estar cheias de significados e sentimentos que precisam ser escavados até alcançados.

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Como eram as finanças de Borges

O dinheiro desempenha um papel duplo na vida artística de Borges. De um lado da moeda, Borges foi abençoado com a vida mais privilegiada e ideal para um gênio literário florescente. Educado na Europa, criado por seu pai para se tornar um escritor sério, Borges dedicou sua vida inteira à literatura. Ele não aceitou um emprego em tempo integral por quase 40 anos. Mas no verso da moeda  vemos que o jovem Georgie Borges não chegou a escrever suas grandes ficções até depois de sua família perder o dinheiro. Para qualquer um que luta para ter a escrita remunerada, a história financeira de Borges é um desconcertante – até mesmo esperançoso – caso a considerar.

A importância do dinheiro e da falência na literatura dele.

 

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Uma história de amor e a letra B

Zenith ainda era uma garota quando visitou um vidente e perguntou sobre o amor. A partir dia começou a busca pelo príncipe encantado com a dica de que seu nome começaria com B. Pouco tempo depois, conheceu Carlos Irineu, que, mesmo sem o B, conquistou seu coração.

Isso, no entanto, não diminuiu a crença de Zenith no vidente. “O B é do sobrenome Bueloni”, dizia. Superada a dúvida do nome, Carlos Irineu se tornou mesmo o grande amor de Zenith. Os dois se casaram na década de 1950 e permaneceram juntos até a morte dele, no ano de 1989.

(…)

Fã de sorvetes, chegou a dizer em seus últimos dias, no hospital, que desejava voltar para casa para chupar um picolé de limão.

Do obituário de Zenith, que parece ter sido uma grande pessoa, na Folha, um pequeno e ótimo conto sobre a vida real.

A seção inteira é demolidora, extraindo de cada personagem um detalhe que parece saído da ficção: o homem que perdeu o bigode premiado em uma aposta, outro que nunca tirava o distintivo do peito, o garçom que virou presidente do Conselho de Medicina, o pianista apaixonado ao extremo por pizza, a mulher que teve uma lua-de-mel sem igual…

Mortes é um título errado para a seção. Trata-se de vidas.

(Publicado também em Medium)

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Chuck Palahniuk, o horror e a literatura

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“Na turnê promocional do meu novo romance, li um conto chamado ‘Tripas’ pela primeira vez em público. A ideia era incluí-lo em um outro livro que se chamaria ‘Assombro’. Meu objetivo com a história era causar horror com coisas bastante comuns: cenouras, velas e piscinas.

Estava numa livraria lotada em Portland, Oregon. Cerca de 800 pessoas foram o bastante para atingir a capacidade de lotação máxima do local. Ler ‘Tripas’ requer um certo nível de concentração e por isso você não tem muito tempo para desviar os olhos do papel. Mas sempre que eu podia, via algumas pessoas nas fileiras da frente com a cara não muito boa.

Mas foi só quando eu acabei de autografar alguns livros que um funcionário se aproximou e me disse que dois homens haviam desmaiado. Os dois despencaram no chão de concreto e não tinham lembrança alguma além de estar em pé, ouvir a leitura e acordarem rodeados pelos pés das outras pessoas. A livraria estava cheia e abafada, pensei. Foi apenas uma casualidade, nada preocupante.

Na noite seguinte, em uma livraria com ar condicionado em Borders, outra grande plateia ouvia a leitura de ‘Tripas’ quando mais duas pessoas desmaiaram. Um homem e uma mulher.

No outro dia, em Seattle, mais duas pessoas foram ao chão exatamente na mesma parte da história, derrubando suas cadeiras com um estrondo no piso de madeira do auditório. A leitura teve que ser interrompida enquanto traziam os dois de volta à consciência. Foi aí que percebemos que tínhamos um padrão.

Na noite seguinte, em São Francisco, mais três pessoas desmaiaram.

Na seguinte, em Berkeley, mais três. Um jornalista que esteve nas três leituras disse que todas as pessoas caíram no momento em que eu li as palavras ”milho e amendoim”. Foi esse detalhe que fez as pessoas despencarem de suas cadeiras. Primeiro, suas mãos tombavam para o lado e seus ombros cediam, fazendo a cabeça pender para um lado. Depois, o peso todo indo ao chão.

tripas 3Na livraria de Beverly Hills, em Los Angeles, uma mulher no fundo do salão gritou pedindo por paramédicos e uma ambulância, chorando tão desesperadamente que a blusa ficou encharcada, tendo que ser torcida por seu marido, molhando o chão.

No banheiro masculino, outro homem tentava fugir da história quando se inclinou  para lavar seu rosto com um pouco de água fria e desmaiou, batendo sua cabeça contra a pia.

Um repórter do Publishers Weekly escreveu um artigo com a manchete: ‘Autor de Clube da Luta derruba-os com um soco’.

Na Universidade de Columbia, no dia seguinte, dois estudantes desmaiaram. Enquanto a ambulância os levava para o hospital, meu editor foi até a ponta do palco, acenou para mim, e quando eu me aproximei, disse: ‘Acho que você já fez bastante estrago com essa história. Não termine de lê-la’.

Na Grã-Bretanha, algumas pessoas desmaiaram nas leituras em Leeds e Cambridge. Em Londres, os banheiros ficaram lotados de pessoas bem vestidas que escaparam da história para se deitar no chão frio e se recuperarem do que haviam escutado.

Até agora, 67 pessoas desmaiaram enquanto eu lia ‘Tripas’. É um conto de nove páginas, e na maioria das vezes, levo cerca de 30 minutos para lê-lo, porque na primeira metade, preciso pausar para que a plateia possa rir, e na segunda, para que ela possa ser reanimada.

Meu objetivo era criar um novo tipo de história de horror, baseada no cotidiano, no mundo em que vivemos, sem monstros ou mágica. ‘Tripas’, e o livro que o traz seriam o alçapão para um lugar sombrio. Um lugar para o qual só você poderia ir, sozinho. Apenas livros têm este poder”.

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* Aqui o conto na íntegra (não coloquei o link lá em cima para não atrapalhar a leitura).

** Depoimento publicado no jornal inglês The Telegraph.

*** Tentei dar crédito ao autor da imagem. Só descobri que é da Playboy, que publicou primeiro o conto, mas não quem o criou. A segunda é da Hybris.

****  Publicado também em Medium.

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